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Sobre o medo de viver



Ilustração de Chapeuzinho Amarelo, personagem do livro de Chico Buarque. Uma menina de chapeu amarelo, com um semblante de medo.
Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque.
Imagine que viver é como fazer uma longa viagem de avião, com paradas ora programadas, ora improvisadas, ora surpreendidas...

Já escutei muitas pessoas confessarem o medo de avião, de barata, cobra, medo de altura, de lugares fechados, de escuro... já escutei até sobre o medo de sentir medo. A escuta clínica me ensinou a nunca, em nenhuma hipótese, desmerecer o medo de ninguém. Pois a verdade é que cada um tem o seu. Medo só não sente quem não sente.


Escutando medos vários, já escutei também sobre o medo da morte. Eu também tenho medos. Mas há um medo que pouco escuto: o medo de viver. Talvez seja o cerne de todos os pavores. O medo dessa viagem de avião, que podemos escolher o destino, o que comer, o que vestir, a companhia... mas o piloto não somos nós.


O comandante maior da vida não somos nós.


Se fizer a diversas pessoas a pergunta: "Quem é o piloto desse avião?". Algumas pessoas podem responder ser Deus, outras pessoas podem responder ser o seu pai, ou sua mãe, outras ainda podem responder ser o governo. Alguns poucos, bem poucos, irão dizer:


Eu aprendi a pilotar esse avião. Estudei e pratiquei bastante.

Não é fácil aprender a pilotar um avião e não é fácil aprender a viver a vida. Mas o mais difícil de tudo é DESAPRENDER. Compreender que podemos aprender a pilotar, mas as circunstâncias são soberanas.


Ao voar de avião de fato, se sentir medo ou pânico, saiba sair da cabine de comando e confiar. Assuma o medo e diga a si mesmo que nada sabe sobre essa aeronave e que precisa se entregar, se quiser voar.


Ao fazer um exame ou procedimento difícil, saiba sair da cabine de comando e confiar nos profissionais que escolheu. Assuma a impotência de estar em uma situação vulnerável. Lembre-se, o médico que te examina pode ter medo de altura. Não se envergonhe! Todos tememos.


Ao viver qualquer situação que lhe traga medo, olhe no fundo dos olhos do medo e veja que até o medo tem medo, de que você desista de desistir. O medo tem medo de que você se arrisque. Tem medo de se machucar. Tenha compaixão por seu medo.


Medo de morrer, claro que tive, claro que tenho. Mas morrer é destino. O medo primordial a ser superado é o medo de viver.

Dizem que o contrário do medo é a coragem. Mas eu tenho minhas dúvidas. Me parece mais que o contrário do medo é a inocência. Deus me salve da inocência. Não essa inocência própria da criança, cheia de fé, mas a inocência de quem parece não ter aprendido com a vida.


Brene Brown define confiança de um jeito bastante ilustrativo: imagine que você esteja caminhando por uma praia e está a colher pedras para enfeitar um vaso. Na vida, nós caminhamos junto de nossos amigos, familiares, colegas, colhendo pedras... quando nossa confiança é abalada, retiramos do pote as pedras colhidas juntas. As vezes o abalo é tamanho, que perdemos todas ou quase todas de uma vez. Outras vezes, uma ou outra são retiradas e conseguimos continuar caminhando em companhia um do outro.


E é aí, quando precisamos confiar nas pessoas ao nosso lado, quando precisamos acreditar nelas, contar com elas, ou até mesmo ajudá-las que saberemos compreender a importância do medo. Olharemos para o pote de nossa relação. O medo aparecerá, com certeza, caso o pote não tenha pedra nenhuma. Que inocência seria não escutá-lo. Poderão também existir pessoas as quais você nem precisa olhar para o pote, você sabe que pode confiar.


Que inocência seria confiar algo muito importante para alguém que nunca colheu nenhuma pedra com você.


Que inocência seria entregar todas as suas pedras a seja lá quem. O medo vai aparecer. E achamos que o medo é o vilão dessa história.


Em outras situações, precisaremos acolher o medo, olhar em seus olhos e dizer:


Eu entendo que quer me proteger, mas olha, eu consigo!

Atendi uma cliente muito querida que chegou ao consultório pela primeira vez e disse: "Eu vim aqui porque quero estudar sobre o meu medo da chuva". Achei interessante sua ideia de estudar sobre seu medo. E assim ela falou sobre sua vida e, claro, também sobre a chuva. Um ano depois, mais segura e mais acolhida por si mesma, pôde lidar com suas memórias das chuvas fortes e devastadoras da infância. E abraçá-las com compaxão. Pôde observar a chuva com respeito, mas também com a tranquilidade de quem está protegida, de quem viveu uma vida cheia de emoções e chuvas... interiores.


Medo e eu, sejamos amigos, não inimigos e jamais dependentes um do outro.

Ontem mesmo, estava na loja da Escola e a porta encostada, não trancada. Dentro da loja, eu, uma mulher e seu bebê de colo. Conversávamos enquanto ela analisava alguns produtos, até que fomos surpreendidas por um homem, parecia ter por volta de 50 anos. Ele abriu a porta sem ao menos bater e nada dizer, entrou e fechou a porta. Medo, que bom que ele existe! Nós duas levantamos na hora. A mulher com o bebê disse: "Meu marido está me esperando lá fora e ficará preocupado com você aqui dentro". O homem insiste em entrar na loja e eu disse "Peço que saia da loja. Nós somos mulheres e não nos sentimos seguras com um homem aqui.".


Acho que ele ficou sem reação com a nossa coragem (que estava bem ao lado do medo). A mulher abriu a porta da loja e eu fiz novamente o pedido "Peço que saia da loja, senhor". Ele saiu. Lá fora ele disse que somente queria mostrar o seu trabalho.


Existe muita violência contra nós, mulheres. Quando tiver essa intenção, fale com as mulheres do lado de fora. Elas se sentirão mais seguras.

Ele foi embora descontente e nós deixamos a inocência para depois. Inocência é para momentos que estamos em segurança.


Li que:


As mais belas histórias tem começo, medo e sim.

Mas saibamos que algumas histórias tem começo, medo e não!


Medo tem pra todos os gostos, idades e tempos... medo tenho vários. Alguns são muito úteis para mim, outros de nada servem. Posso chamá-lo de: preocupação, ansiedade, insegurança... Medo tem vários nomes. As vezes dá frio na barriga, tremedeira, suor intenso. Respire fundo. Se acolha.


E continue a caminhar sem medo de viver!




Camila Marques

Psicóloga, psicoterapeuta e arteterapeuta. Co-fundadora da Escola de Empatia, aprendiz e cultivadora da Comunicação Não Violenta. Apaixonada por Carl Rogers e Rubem Alves; cursou a Formação em Psicologia Clínica na Abordagem Centrada na Pessoa e a Formação em Plantão Psicológico Centrado na Pessoa no CPH-MG; Designer de Sustentabilidade, formada pelo Gaia Education Belo Horizonte; Certificada em Bem estar, Empatia e Felicidade - PUC-RS. É plantonista no Plantão Psicológico do CPH-Minas e psicóloga da Coopeder/MG.



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