Sobre mulheres, bruxas e reconexão com os ciclos
- Camila Marques
- 8 de mar. de 2021
- 7 min de leitura

Olá!
Hoje ofereço este texto que me conecta com profundas reflexões para ir para além das parabenizações no Dia Internacional da Mulher. Vamos ver aqui reflexões sobre:
Bruxas e a concepção matriarcal nas primeira civilizações;
A concepção patriarcal e a instauração da cultura de dominação;
E o resgate à conexão com os ciclos da vida através do feminismo e da CNV.
Aceita o convite de leitura? Então vamos lá =)
A mulher como centro do mundo:
Para falar sobre bruxas e as mulheres nas primeiras civilizações, começo este texto apresentando a polêmica obra do pintor francês Gustave Courbet (1819-1877) chamada A Origem do Mundo. Na pintura, um plano fechado sobre o sexo e o ventre de uma mulher, sem evocação erótica, revelando pura e simplesmente o órgão sexual feminino.
Em 2018, Claude Schopp desvendou acidentalmente o grande mistério de quem era a modelo retratada e lançou o livro “L’origine du monde, vie du modele”. Após 150 anos, foi revelado no livro o rosto de Constance Quéniaux, uma antiga bailarina da Ópera de Paris e, com o lançamento do livro, a obra volta a ser alvo de censuras e críticas.
A censura, o olhar e a crítica para o corpo da mulher é tema que merece reflexões, mas, através desta obra, quero te convidar a uma conversa sobre um tempo em que a mulher ocupava um lugar divino e sagrado, fazendo uma visita à mitologia e algumas perspectivas sobre a história da humanidade apontadas pelo médico, psicanalista junguiano e especialista em mitologia, Bernardo de Gregório.
A história da humanidade é marcada pelo feminino e a capacidade de gerar a vida. A possibilidade da mulher de engravidar, carregar uma criança em seu ventre, dar-lhe a luz e, ainda, ter em seu corpo a sua alimentação (o leite materno), foram marcantes e determinaram o lugar que a mulher assumiu nos primeiros grupos de seres humanos.
Nas sociedades mais primitivas o papel do homem na fecundação era desconhecido e a mulher era a única referência acerca da origem da vida. Isto a colocava no centro da relação com o sagrado. A mulher era deusa, divina e compartilhava com a Grande Mãe Terra a tarefa de criar e sustentar a vida.
Menstruação e a origem das bruxas:
Segundo Bernardo de Gregório, no período pré-histórico, ainda quando não se podia considerar a existência de humanidade, não havia a ideia de homem e mulher. Acerca da mulher, também não havia menstruação. As fêmeas ovulavam, fecundavam e geravam os filhotes.
Sendo a criadora dos filhotes, a mulher tinha o poder sobre a alimentação, a pele dos animais que aqueciam, o poder sobre o fogo e o poder de garantir a existência das próximas gerações.
Os homens tinham poder da força física, que lhe proporcionava a responsabilidade pela caça e atividades braçais. Neste sentido, um precisava do outro, mas devido à capacidade de criação da mulher, a vida estava intimamente ligada aos ciclos do feminino e aos ciclos da natureza. O tempo era demarcado pelo ciclo de reprodução (ovulação e fecundação), do ano (4 estações), do mês (as fases da lua). Não havia a ideia de um tempo retilíneo (passado, presente e futuro) na cultura matriarcal. Esta é uma concepção patriarcal.
O funcionamento de tudo era regido por tradições, não haviam imposições, mas somente o ciclo natural das coisas. As mudanças começam a acontecer, segundo Gregório, através de duas revoluções.
A primeira revolução foi marcada por uma escolha: uma mulher que disse "não" ao ritual de fecundação, que, como dito, não era uma obrigação, mas o natural de ser feito.
A mulher não foi fecundada e 15 dias depois menstruou.
O sangue, naquele tempo, era sinal de doença e morte e a menstruação foi considerada como uma maldição. A mulher foi amaldiçoada por ter rompido com a deusa da terra e foi expulsa da comunidade, condenada a viver na floresta.
As mulheres que, desde então, disseram "não" foram chamadas de bruxas. Por viver na floresta, passou a ser dona de mistérios e sabedorias da natureza; passou a conhecer os segredos da vida e da morte. Também após romper com a deusa terra, as mulheres que disseram não se conectam com a deusa da lua.
Esta primeira revolução, já começa a apontar mudanças: a origem do lugar de escolha.
A revolução masculina e o patriarcado:
Como vimos e como bem conta Bernardo de Gregório, a visão de mundo era uma visão matriarcal. Os homens, que não podiam ter filhos, não tinham o poder e a sabedora acerca da culinária, curas e sobre a pele e o fogo que aqueciam, viram na força uma possibilidade de revolução (2ª revolução).
Prenderam as mulheres e, para tirar-lhes o poder acerca dos filhos e futuras gerações, as mulheres podiam ter somente um homem e, assim, criaram a ideia de pai. Para garantir que o filho era do pai, a mulher deveria casar virgem.
O patriarcado rompe com a conexão com os ciclos e com a natureza ao instaurar as leis, proibições e a ideia de um tempo retilíneo. O passado: era preciso garantir que a mulher era virgem para que também houvesse a garantia da propriedade sobre o filho. O presente: a mulher poderia ter somente um homem. O futuro: a mulher que descumprisse as normas estabelecidas, era punida com a morte. Assim, a ideia de passado, presente e futuro instaura a cultura de punição.
Punição, patriarcado e feminismo:
Desde o rompimento com o matriarcado, as sociedades vivem as consequências de uma cultura de dominação. A desconexão com a natureza, o paradigma da conquista, a ideia de posse e poder desde então estabelecem o lugar da hierarquia e submissão. A consequência: uma grande involução cultural.
As religiões matriarcais passaram a ser segregadas e fundando desde então a ideia da existência de um único Deus.
O patriarcado instaura a intolerância à diversidade, às diferentes formas de existência. Instaura a ideia do certo e do errado e o lugar da desobediência.
Desde a origem das bruxas, a liberdade de escolha e a oposição ao patriarcado ocupou lugar da marginalidade. A busca pela liberdade da mulher instaura atos feministas e ainda hoje são vistos por muitos como atos de rebeldia e, até mesmo, "mimimi".
A queima simbólica dos sutiãs, a luta pela descriminalização do aborto, o manifesto ao feminicídio, machismo e violência, são algumas das buscas por liberdade e respeito feita pelas mulheres.
A CNV, a defesa da vida e o resgate do feminino:
Como a Comunicação Não Violenta se relaciona com a busca pela defesa da vida e o resgate do feminino? Para mim, através da conexão com os ciclos.
Se olharmos através de um prisma patriarcal, a CNV pode se resumir aos quatro passos e, facilmente, ser instrumento de dominação - por exemplo, sendo um recurso para convencer pessoas. Contudo, se olharmos para a CNV com a concepção cíclica, vamos perceber que ela não diz respeito aos quatro passos, mas sim, diz respeito à conexão com a vida.
Conectar-se com o organismo e com o fluxo de dar e receber, para mim é uma forma de transformação cultural e mudança de paradigma: da dominação, da cultura retributiva, da punição e recompensa, para a conexão com a complexidade que é olhar pela ótica das necessidades humanas.
A compreensão de que a observação não ocupa o lugar de primeiro passo, mas sim com a ideia de que estamos em constante conexão com o nosso entorno. Recebemos estímulos, somos afetados pelos comportamentos de outras pessoas, assim como também afetamos o que nos cerca.
A compreensão de que o sentimento não é simplesmente o segundo passo, mas a própria natureza humana de significar o modo como nosso organismo é afetado pelo mundo.
A compreensão de que o terceiro e quarto passo, na verdade, dizem respeito à constante busca pela manutenção da vida através dos pedidos, dos recursos que podem atender nossas necessidades.
Comunicar-se em uma concepção cíclica é um modo de se conectar com o próprio organismo e com a natureza, percebendo de que forma as nossas escolhas e comportamentos impedem ou facilitam o fluxo da vida. Isto transpõe à ideia simplista de punir e recompensar a quem obedece ou não à cultura dominante e oferece a possibilidade de investigar como é considerar a complexidade, a diversidade de escolhas e ações, encontrando a harmonia através do diálogo.
Eu celebro a possibilidade de conexão com o feminino através do diálogo. Feminino, é importante saber, nada tem a ver com a ideia de gênero (homem e mulher), mas com a qualidade do cuidado. Eu celebro que estejamos construindo com a Comunicação Não Violenta, um jeito de ser que coopera e que inclui.
Termino este texto com uma proposta: neste dia em que parabenizamos as mulheres, sem mesmo saber o porque, eu proponho que você se arrisque a investigar o feminino que existe em você: este olhar para o fluxo da vida.
Comece pelo fluxo de sua respiração e perceba que, para ele se completar, como é importante e imprescindível o movimento de acolher o ar e desapegar do ar. Prender o ar, prender a fala, prender o choro, pode nos fazer adoecer.
Veja se você consegue aplicar este mesmo fluxo em outros aspectos da vida. Por exemplo, ao estar diante de um conflito, ao invés de repetir a tendência de punição e submissão (fixar-se em algum comportamento), tente experimentar o fluxo: o que eu vejo (o que atravessa meu organismo tal como o ar que entra), o que eu sinto, como me nutre (isto apoia minha vida?), como eu devolvo (tal como a expiração em forma de pedidos). E do outro lado, como o outro vê, escuta, sente, se nutre ou não ao receber o meu pedido?
Se expandir o fluxo de dar e receber para as suas relações com as pessoas ainda for desafiador, fique com a prática da respiração e vá se nutrindo de cuidado com o seu próprio ser, com a sua presença.
Fico por aqui aberta a continuar este diálogo com você: de que outras formas podemos nos conectar com o ciclo feminino/nutritivo de dar e receber?
A você, um grande abraço!

Camila Marques é psicóloga, especialista em arteterapia e co-fundadora da Escola de Empatia. Mãe do Gustavo e investigadora de necessidades humanas. Estuda a Comunicação Não-Violenta desde 2014 e outras áreas do conhecimento como a Abordagem Centrada na Pessoa. Formada pelo Gaia Education: Design para Sustentabilidade.
Uma referência para buscar mais:
Comments