O inadiável exercício da empatia
No dia 19 de março fui convidada para uma entrevista pelo site Cria Para o Mundo sobre a importância da empatia diante da pandemia do covid-19. Muitas reflexões surgiram com esta entrevista que pode ser lida por aqui. Quero compartilha-las com você!
Neste texto irei dialogar sobre o inadiável exercício da empatia e a vida em comunidade, seguindo os tópicos:
O que é empatia.
Por que o exercício da empatia se tornou inadiável?
Como a empatia pode contribuir com nossa vida em comunidade.
Então vamos lá? Afinal, empatia é uma palavra muito lida e dita atualmente, mas realmente saber o que é empatia?
A empatia popularmente é conhecida de um modo que nos traz confusões e equívocos. Dizemos que empatia é colocar os pés no lugar do outro, ver o mundo com os olhos do outro, ou se colocar no lugar do outro. Tem até mesmo a regra de ouro que nos diz que empatia é fazer com o outro aquilo que gostaríamos que fizessem com a gente. Mas todos estes modos de ver a empatia acabam nos afastando da possibilidade de realmente agir de forma mais empática.
Pra entendermos sobre a empatia, precisamos compreender primeiro um mecanismo que temos e que nos leva a tomar decisões rápidas e tirar conclusões precipitadas. É um mecanismo instintivo-emocional que ajuda a garantir a nossa sobrevivência, composto por dois sistemas cerebrais.
De modo resumido, há em nosso cérebro três camadas que foram sobrepostas ao longo da evolução humana: o cérebro primitivo (reptiliano), o cérebro emocional, e o lógico-racional (neo cortex).
O primeiro sistema, o reptiliano, é um sistema ligado principalmente a funções vitais e involuntárias em nosso organismo: respiração, frequência cardíaca... O segundo sistema, o emocional, é o cérebro dos mamíferos, que permite a formação de grupos e estabelecimento de vínculos. Passamos a ter a possibilidade de ter e reconhecer emoções.
O primeiro mecanismo cerebral é um mecanismo rápido e instintivo, ligado à sobrevivência, ao combate e à fuga. Ele funciona muito bem quando realmente precisamos de respostas rápidas. Como, por exemplo, ao esquivar de um obstáculo. Mas, aliado ao nosso cérebro emocional, empregamos em ações que poderiam ser tidas com mais cuidado e consciência, um modo de ser automático e primitivo. Assim, nós temos a tendência de, em nossos relacionamentos, tirar conclusões precipitadas, fazer julgamentos, projeções e criar muros que nos separam dos outros.
Chamamos isso de simpatia e antipatia. O nosso modo reptiliano, quando opera em nossas relações humanas, tende a fazer um recorte rápido sobre uma pessoa ou uma situação e assim tomar a atitude de simpatizar (quando nossas emoções diante do outro são agradáveis) ou antipatizar (quando temos emoções incômodas). Com isso, nos juntamos em grupos de pessoas que pensam de maneiras semelhantes a nós (as famosas bolhas) e nos afastamos de pessoas que pensam diferente, o que gera a polarização.
A empatia está ligada a terceira camada cerebral, chamada neo cortex, que nos possibilita utilizar a cognição e a compreensão. Este é um mecanismo mais lento, porém, somente com ele sou capaz de processar de maneira respeitosa pensamentos diferentes dos meus. Sou capaz então de ter como foco de atenção uma história que não é minha, compreender um ponto de vista diferente e não simplesmente colocar o meu pé no sapato do outro.
A empatia é uma habilidade ligada a capacidade de cognição, onde tenho as condutas de atenção focada no outro (não em mim), escuta atenta e verbalização, que é quando eu checo com o outro se o que eu escutei foi o que ele realmente disse. O psicólogo Carl Rogers, criador da Abordagem Centrada na Pessoa, chama isto de resposta compreensiva. A empatia precisa ser um processo ativo e investigativo. Por isto, após escutar a história do outro eu digo "olha, escutei você me dizer isso, isso e isso. Foi isso mesmo que quis me dizer?". E assim vamos criando pontes que nos unem respeitosamente mesmo diante de perspectivas diferentes.
Este é, para mim, o grande benefício da empatia: criar pontes de compreensão respeitosa e não muros de polarização.
Atualmente, viemos enfrentando momentos difíceis diante da pandemia do covid-19. Acredito que o momento de crise é a oportunidade para a mudança inadiável que precisamos ter. Toda crise, seja ela de idade, econômica, social, tem em si um propósito que, se antes impensado em nossas vidas, tornou-se inadiável. Tornou-se inadiável, no momento em que vivemos hoje, criarmos o senso de comunidade.
Não é de hoje que pessoas estão morrendo pela negligência da necessidade de fazermos algo uns pelos outros e não somente por nós mesmos e por nossas bolhas. É preciso esticar o pescoço e reconhecer o processo de interdependência em que vivemos.
Ainda tem dúvidas sobre porque a empatia é um exercício inadiável?
A empatia é a possibilidade de fazer a costura de retalhos de opiniões individuais que ficariam antes soltos e polarizados. A empatia e a escuta inclui e não exclui. A empatia busca a compreensão do todo e não uma compreensão seletiva daquilo que me parece mais apropriado. Como podemos então aprender com cada uma das pessoas? Como dialogar sobre nossas preferências e necessidades? Como saber o momento mais propício para cada um e abrir mão quando precisar de abrir?
Viver em comunidade requer comprometimento, inclusive abrindo mão de algo que é importante para um bem maior.
Certamente existe uma parcela de pessoas que ainda não consegue pensar coletivamente e sempre irá haver - e talvez seja inclusive isto que nos motiva pela busca do coletivo. Mas tenho visto uma grande parcela de pessoas pensando no outro e de se cuidar, se prevenir pelo outro.
Isto é maravilhoso, pois a verdade é que este é um pensamento determinante para a nossa existência na terra: pensar nas pessoas, se cuidar também pelo outro. É inadiável que possamos pensar em como posso me cuidar, cuidar da minha vida e das pessoas próximas de mim, de modo que possa preservar não somente a minha saúde e bem estar, mas também de toda a humanidade. De que modo as minhas ações podem possibilitar uma vida boa, que talvez nem seja colhida pelas gerações que estão aqui, mas pelas gerações que virão?
Se pudermos aprender diante das crises que vivemos e construir fortemente o senso de comunidade e colaboração, poderemos diminuir tantas mortes pela dengue, tantos contágios por doenças infecciosas que podem parecer inofensivas para uns, mas letais para outros; ou até mesmo infecções mais complexas como o HIV.
Assisti recentemente a uma palestra da dra. Ana Claudia Quintana Arantes no Movimento inFINITO e ela disse algumas palavras sobre coisas que passam do impensável, impossível e improvável, para o inadiável e imperdível.
Há movimentos que antes eram impensáveis. Poderia haver pessoas isoladas que antes pensavam na importância da empatia, talvez um grupo pequeno, creio que de psicólogos e pessoas que trabalhavam com o cuidado com o outro e que levaram solitariamente esta missão para frente. Então as pessoas passaram a perceber a importância - "sim, empatia é importante" - mas parecia impossível: "Aqui? Não... aqui é impossível as pessoas relacionarem com empatia". Com o tempo até passamos a reconhecer a possibilidade, mas parecia improvável - "É possível, mas pouco provável... as pessoas estão muito atarefadas para parar e escutar umas as outras". Mas com um salto quântico, de improvável vamos para o inevitável. Não há outra saída, nós precisamos desenvolver em nós a habilidade de empatia, precisamos conversar com mais respeito, precisamos de aprender algo com essas nossas diferenças. A polarização não cabe mais.
Com o covid-19, essa crise que vem nos obrigando a voltar para casa, a ficar com as nossas crianças, a abdicar do individualismo, acredito que não é mais inevitável: é imperdível que possamos sair dessa experiência mais empáticos.
A empatia tem muito a contribuir com a nossa vida em comunidade!
Nossas ações estão interligadas. Assim como o lixo que eu jogo "para fora", na verdade continua a habitar esse mesmo planeta no qual co-existo; todas as nossas ações criam consequências danosas ou benéficas para esta mesma sociedade a qual faço parte, onde compartilhamos de necessidades e valores humanos universais. Alimento, abrigo, amor, paz, liberdade... são todos valores que compartilhamos na teia da vida. De modo com que a guerra em outro lado do mundo afeta a minha paz. A fome do outro lado da rua afeta a minha saciedade.
O que precisamos agora diante da impotência é resgatar o nosso poder e diante do medo resgatar a nossa coragem.
Camila Marques é psicóloga, especialista em arteterapia e co-fundadora da Escola de Empatia. Mãe do Gustavo e investigadora de necessidades humanas. Estuda a Comunicação Não-Violenta desde 2014 e outras áreas do conhecimento como a Abordagem Centrada na Pessoa. Formada pelo Gaia Education: Design para Sustentabilidade.